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sábado, 19 de outubro de 2013

O “MEU” RIO JARAGUÁ
(BAIRRO DO RIO DO CERRO –  JARAGUÁ DO SUL,SC)
                                                                                                          Sandra Pereira

A dificuldade em encontrar  algum registro fotográfico de época relativo a uma paisagem natural que tenha marcado a minha infância (e que eu pudesse confrontar com as imagens de agora) afim de poder cumprir com o  trabalho pedido pelo professor  do meu curso de mestrado, na Univille, não impede que eu vasculhe minhas memórias e, fechando os olhos, encontre o mesmo rio Jaraguá, imenso e caudaloso como ainda o trago guardado em mim.
O “meu” rio Jaraguá de 1968, parece gigante aos meus olhos de menina. Tenho apenas 6 anos e moro bem ao lado dele. Meu pai é um dos funcionários da recém-fundada Malwee e moramos (sem pagar aluguel) numa casa de madeira que nos foi recentemente cedida pelo proprietário da empresa. Portanto, estou, no máximo, a 50 metros da margem do rio, pouco antes da enorme ponte de madeira e muito próxima à residência da família Weege.
O “meu” rio guarda mistérios insondáveis que aguçam minha curiosidade.
Sem pedir licença, resolvo descer a barranca e refrescar meus pés numa pequena praia de areia clara e seixos arredondados.
A tentação de banhar-me é enorme, porém, assustada, mudo de ideia ao ouvir o chamado, já desesperado, de minha mãe.
Preciso ir para casa. Que pena! Não deu tempo de recolher os ovos que as patas (ou seriam gansas?) costumam depositar na areia.
“Que ovos, menina! Isso deve ser ôvo de cobra! Não lembra da cobra que a mãe matou semana passada??”
Só então descubro que os répteis adoram fazer seus ninhos nas barrancas do rio e no verão costumam sair para dar suas voltinhas no pomar da minha casa... e até dentro dela.
Ainda assim, não me importo em dividir a beleza do rio com os mesmos. Tenho fascínio pela água e levo algum tempo até poder convencer minha mãe a darmos um passeio na sua prainha. Preciso mostrar-lhe os ovos  afim de que ela os identifique e, quem sabe, traga alguns para fazermos um bolo.
Um aparte para falar de minha mãe: Rosa é uma mulher de mil habilidades. Além de matar cobras logo na primeira paulada, sabe fazer doces como ninguém e prontamente identifica os ovos: são de gansa! ... “mas aqueles mais compridos alí,  não sei não!!!”
Porém, o sonho de comer um bolo feito com aqueles ovos sucumbe diante da postura politicamente correta da minha mãe: “As gansas não são nossas!! Nein, nein!”
Nesse dia aprendo minha primeira lição sobre o que é ser honesta: “Não se tira um grão de arroz do lugar se ele não for nosso!”... tão diferente do lema “achado não é roubado” que irei presenciar pela vida a fora. “Vou fazer um bolo de laranja com ovos de galinha mesmo! E nada de você ir sozinha no rio!”
Fica combinado que eu devo brincar no quintal sob os olhos atentos de minha mãe.
O jeito é subir na goiabeira para poder admirar o rio de longe e poder cantar pra ele e pra Deus, um dos meus passatempos favoritos. Gosto de ouvir minha mãe cantar e ela me ensina velhas cantigas em alemão. Falo alemão –uma variante dialetal que talvez já tenha desaparecido. Não me alfabetizo nessa língua; continuo “analfabeta em alemão” até hoje. Porém, guardo-a numa gaveta trancada em algum canto da memória.
A goiabeira convive em paz com os vários pés de frutas e vou aprendendo a conhecer cada um: laranja-açúcar, laranja-lima, pêssego, ameixa, mamão, abacate, limão e me delicio ajudando minha mãe a cuidar da  imensa horta –tenho até minha própria enxada pequena. Sinto-me importante semeando os canteiros e vivo uma infância feliz num bairro que se urbaniza rapidamente e ao mesmo tempo conserva ares de cidade do interior.
Nesse sábado, pela noite, meu pai e os vizinhos colocarão os côvados para capturar um peixe que rasga todas as redes de pesca: o cascudo da pedra. Ainda que a fábrica lance tinta de tecido no rio, mesmo assim é possível, em um ponto mais distante, anterior à fábrica, pescar e ser feliz.
Chega o domingo de manhã e resolvo acompanhar meu pai na empreitada. Costumo acompanhá-lo na pesca de caniço.
Fico empolgada ao ver os homens abrindo aqueles côvados que mais parecem  cestos gigantes. Sou apresentada ao peixe e nunca esquecerei da sensação rugosa que experimento ao tocar um exemplar da espécie embora ele me pareça extremamente feio.
Meu cunhado aparece com minha irmã e os filhos. Meu pai e ele gostam de cozinhar e volta e meia inventam algum prato. Um dos colegas de meu pai ajuda a trazer os peixes. Começam a limpá-los e vão jogando dentro de um panelão.. Ao cabo de um tempo, está pronto um delicioso caldo de cascudo da pedra. Sim, “tem que ser da pedra!”. Sou informada  que existem cascudos que vivem em outras águas, porém, o das pedras é o de melhor sabor.
Cresço um pouco e estou ansiosa para ser matriculada no pré-primário. Na verdade ando rabiscando umas folhas em branco nos cadernos antigos das minhas irmãs (ótimas alunas!) que a minha mãe guarda de lembrança dentro duma velha bolsa escolar de couro. Ela nem imagina que arranquei uma folha para desenhar. Uma só! Mesmo assim, logo sou descoberta e passo a fazer meus rabiscos em papel de pão até o dia em que compram um caderno só pra mim.
Coloco as bonecas sentadas em cima dos caixotes de madeira e dou aula para elas. Noutras vezes faço de conta que são um balcão ou uma mesa “de escritório” e me ponho a sonhar em, um dia, trabalhar num lugar grande, sentada atrás duma mesa que tenha uma máquina de escrever e uma calculadora iguaizinhas as que vi no escritório da empresa quando, dia desses, fui levar a marmita para o meu pai que não queria “perder tempo” em vir almoçar em casa.
O rio me intriga e me encanta. Convenço meu pai a nos levar para tomar banho num dia quente de verão. A água é limpa e posso enxergar as pedras e os peixinhos nadando por entre meus pés.
No final deste ano mesmo iremos mudar para Guaramirim onde iniciarei meus estudos. Não frequento o pré-primário por muito tempo.
Dizem os psico-pedagogos que as brincadeiras de infância delineiam os múltiplos papéis que se vai desempenhar na vida.
Pois digo que olhando o rio do alto da goiabeira (onde gosto de cantar bem alto) ensaio e sou várias pessoas: uma quase atriz, uma quase-cantora e uma quase violonista; bancária, secretária numa multinacional (num escritório “bein grandeee”), leitora voraz metida a escrever e professora de idiomas. Viajo por uma parte do mundo, exercito meu inglês e em Frankfurt, na hora de pedir uma informação, nem todos dominam o idioma “mundial”. Vejo-me obrigada a destravar uma gaveta: encontro a chave rapidamente e arrisco um “Bitte, wo ist das Badezimmer?” (Por favor, onde fica o banheiro?) e me surpreendo ao entender a resposta: siga em frente e entre na quarta porta à direita. Alívio ao quadrado!
Nesse dezembro de 68, dias depois do Natal, despeço-me do “meu” rio Jaraguá um pouco entristecida mas supero isso em poucos dias, animada com o início das aulas que me esperam em Guaramirim.
Futuramente voltarei para visitar o Parque da Malwee algumas vezes, porém, de carona. Todas as vezes meus olhos irão procurar sôfregos a casa e o rio. Quando pergunto sobre a ponte e a casa, a resposta é sempre a mesma: “Já passou! Você não viu?”

(...)
Nesta tarde de 2013, aos 51 anos volto à Barra do Rio do Cerro e molho os meus pés no rio  Jaraguá ainda uma vez.
Surpresa o reconheço muito embora ele me pareça diferente: não é tão grande quanto eu o trago guardado em mim. Será que cresci tanto assim ou ele, como um ancião foi quem encolheu? Ainda vejo umas poucas árvores em suas encostas, porém, suas barrancas deram lugar a um muro o que o faz parecer ainda mais estreito. Suas águas estão mais escuras com uma coloração barrenta. Nem sinal das gansas tampouco das cobras!
Será que todos foram embora como eu?
Sou informada que ainda é possível pescar em alguns pontos do rio, notadamente, após a chuva. Geralmente dois dias depois o rio fica limpo.
Lembro do meu professor me pedindo para prospectarmos o local considerando uma aproximação de dois graus entre a temperatura máxima no inverno e a máxima de verão. Sou alertada que, possivelmente, estas duas estações desaparecerão de nosso estado nos próximos quarenta anos. Provavelmente, viveremos num clima de “eterna” meia-estação. Haverá um impacto no meio ambiente com fortes consequências para a nossa economia em seus vários segmentos: desaparecem o turismo de verão e não teremos mais maçãs em Friburgo; só haverá espaço para o cultivo de bananas, mesmo nos lugares mais altos.
A projeção que faço me alerta sobre o desaparecimento das árvores frutíferas e o aquecimento das águas que podem vir a extinguir algumas espécies de peixes. Tomara que estejam enganados! Só o tempo dirá.
Ansiosa, procuro vestígios da velha casa e seu pomar. Quem sabe ainda esteja lá! Talvez eu possa ver ao menos um pé de laranja ou a velha goiabeira.
A foto que localizo pela internet desmonta minha expectativa e vejo que o local é, agora, um estacionamento.
A rua está pavimentada e nas calçadas estão plantadas belas árvores. O cenário é agradável, porém, é outro. Há sinais de desenvolvimento e modernidade por todo lado.
E a ponte gigante de madeira? É de concreto e parece tão pequena!
Aliviada percebo que  a velha fábrica ainda permanece lá. Seu prédio de tijolinhos à vista também não me parece tão grande (risos) embora seja possível visualizar sua expansão.
Também reencontro a antiga casa dos donos da empresa -hoje transformada num escritório- e que povoa minhas fantasias tal é sua beleza e a formosura de seus “imensos” jardins.
A menina que sou ainda conversa com a filha dos donos pela cerca de arame farpado que separa as duas propriedades. Vez por outra uma gentil senhora, com ares de avó a acompanha e, ambas, vem conversar com minha mãe e eu. As senhoras, por puro saudosismo, falam em alemão e apreciam a companhia uma da outra. Sou presenteada com roupas e brinquedos semi-novos quase sempre. Não tenho tudo o que quero mas tenho tudo o que preciso. Nada me falta. Nessa mesma manhã somos convidadas para um delicioso café da tarde e brinco um pouco com a garota, mais velha do que eu uns poucos anos. Diante do “Vamos embora que já é tarde!” imploro que minha mãe me deixe ficar um pouco mais: a casa de bonecas está a espera de ser visitada e meus olhos vislumbram um espetáculo jamais esquecido.
Subitamente ouço minha mãe chamando por sobre a cerca: “Pra casa, já! Tem uma  louçinha pra você secar!”.
Relutante e educada me despeço. Há duas tarefas que precisam ser cumpridas. Atendo à mãe e ao professor: revisito o rio pela minha escrita e os meus pés o tocam pois a menina “de dentro dele nunca os tirou”1.







1 Trecho extraído da música “Força Estranha” de autoria de Roberto e Erasmo Carlos.